domingo, 20 de dezembro de 2009

O lugar das mãos vermelhas

O bairro era acanhado e habitado por famílias humildes. Das fachadas sobressaíam tons de branco, de ponta a ponta transpareciam rostos parecidos. O tempo corria. Em plenos anos oitenta o bairro degradava-se, facto disfarçado pelas vidas que o faziam.
Essencialmente, eram casais jovens que ali moravam. Em início de vida, viam lá um lugar para criar os filhos nos primeiros anos, enquanto o salário não chegava para ousadias. Era gente que se conhecia, que convivia de forma próxima e, entre afectos e naturais desentendimentos, sentia-se que aquelas pessoas estavam ligadas. Sem as crianças talvez não fosse assim mas elas enchiam o bairro, tornavam-no importante. Elas aproximavam quem lá morava. Fosse apenas pela sua vontade de descoberta ou pelo entusiasmo que colocavam nos brinquedos de época que a seu tempo exigiam, a verdade é que a alegria das muitas horas passadas na rua fazia daquele um bairro orgulhoso.
A excepção à juventude vinha de um dos extremos. Aí, numa das casas, habitava um casal de meia-idade. Eles viviam sós e talvez por isso fossem vistos pelos mais novos como uma espécie de avós. Ele, carpinteiro, saía cedo para o ofício, enquanto ela, a Sra. Beatriz, ficava por casa, passando horas de volta da roupa suja. Enquanto lavava, via os miúdos na rua, apercebendo-se das suas brincadeiras. Estes faziam questão de a cumprimentar e abeiravam-se dela para lhe explicar os passatempos. Então ela, no seu jeito meigo e paciente, sorria-lhes, respondia às curiosidades e perguntava-lhes como iam a mãe e o pai. Depois contava-lhes histórias que eles ouviam enquanto a olhavam. Eles reparavam nas suas mãos. Àqueles miúdos não mais sairá da lembrança o vermelho das mãos da Sra. Beatriz, fruto do frio e das horas passadas na água gelada de um tanque de cimento. Todos gostavam da Sra. Beatriz. Eles respeitavam-na e ela, vendo neles o futuro, sabia que a terra entranhada nas mãos deles ou os arranhões nos joelhos apenas contribuíam para o saudável crescimento de uma geração.
Os anos passaram, o bairro mudou. As crianças já não eram crianças e já não moravam ali. Viviam espalhados e um dia souberam da morte da Sra. Beatriz. Desde que tinham saído do bairro, ela sempre perguntava pelos meninos. De vez em quando, alguns iam vê-la e ela ficava feliz. Mas ela agora morria e nada poderia ser mais injusto. Embora distantes, os pensamentos deles voltavam atrás no tempo, para junto daquele tanque, onde uma senhora doente cumpria as suas tarefas. Lembravam-se do seu esforço e da sua simpatia. Pensavam no prego e no peão que tinham deixado de jogar. Olhavam de novo aquelas mãos sofridas e convenciam-se da sua bondade.
O tempo não parou. O bairro ainda existe mas está diferente. Não por um dos blocos ter dado lugar a um prédio de apartamentos, mas pelo resto que lhe falta. Quem por lá passa ouve o barulho de carros e os passos de pessoas apressadas. Mas já ninguém pára para ver os jogos de berlinde. Já não há jogos de berlinde e não se vêem miúdos na rua. A velha mercearia fechou e abriram novas lojas, mas sente-se no ar um certo abandono. E há silêncio. Não se ouvem risos de criança. Agora, aquele lugar é só mais um sítio onde se pode morar. O Sr. Fernando, carpinteiro, ainda é vivo. Caminha devagar e a saúde é precária. Recentemente emocionou-se ao encontrar um dos miúdos numa das ruas da vila. Perguntou pelos outros e pela família. Lamentou a sorte com a dignidade de sempre. Num dos extremos do bairro, ervas crescidas sugerem ausência de gente. A um canto está um velho tanque de cimento, abandonado.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O próximo feriado

Observo uma sequência cronológica em alguns dos feriados comemorados: primeiro o país, depois a independência, a seguir a república, por fim a liberdade.
Desses, que incluem protocolo e cerimónias oficias, parece-me ser a ordem adoptada.
Mas pergunto-me se não haverá espaço para mais algum. É que os 10,2% de desempregados de hoje fazem-me imaginar que talvez venhamos a celebrar o dia em todos passámos a ser precisos.